O livro - emblemático por todo um conjunto de razões - versa sobre o período tão próximo e aparentemente tão longínquo da Rússia czarista, no início do séc. xx. Um tempo de desníveis e injustiça social extrema, condições de vida (social, laboral, cultural, pessoal, familiar) de uma atrocidade difícil de apreender ou imaginar, e se não houvesse razões literárias suficientes que justificassem a sua leitura, o mergulho histórico nos tempos de obscuridade, opressão, luta desigual e movimento embrionário de revolta e mudança que aqui se vivem seria suficiente, por si só, para a recomendar.
Mas Gorky (pseudónimo que significa “amargo”) é, além do mais, um autor de calibre excepcional, à semelhança de outros tantos do seu tempo e espaço, sublime na construção de personagens (na elaboração de cada pensamento, sentimento, cada ímpeto, inquietação e centelha de desejo que lhes atribui), na recriação de cenários (que se desenham à nossa frente com um realismo que impressiona), na edificação da história e na atribuição de sentido, profundidade e beleza a cada linha que redige.
«Nós, a gente do povo - explicou - sentimos tudo, mas é-nos difícil exprimi-lo, não podemos formar senão ideias incertas; e envergonhamo-nos de não poder dizer o que sentimos. E quantas vezes, para falar com consciência, a gente não se zanga com as próprias ideias e com aqueles que no-las sugere! Começamos a irritar-nos e afugentamo-las! Em que agitação se passa esta vida! É ela que por todos os lados nos assalta e nos magoa. Era tão bom descansar!... Mas os pensamentos não deixam à alma um só momento de repouso e ordenam-lhe que veja, que ouça.»
Se há livros em que a primeira página é o suficiente para se perceber - do ponto de vista literário - o que temos à nossa frente, este é um deles, pelo que transcrevo o parágrafo inicial, a título ilustrativo:
«Todos os dias, a sereia da fábrica lançava no ar fumarento e oleoso, por sobre o bairro operário, o seu vibrante rugido. E das pequenas casas escuras, obedecendo ao chamamento, saíam à pressa, como baratas assustadas, pessoas taciturnas, cujos músculos o sono não conseguia revigorar. Na penumbra fria, caminhavam pela rua mal pavimentada para a grande gaiola de pedra da fábrica que, serena e indiferente, as esperava, vigiando o caminho lamacento com as suas dezenas de olhos quadrados e viscosos. A lama estalava sob os pés. Ouviam-se exclamações roucas de vozes ensonadas, pragas grosseiras cortavam o ar, e ao encontro das pessoas chegavam outros sons: o ruído pesado das máquinas, o grunhido do vapor. Sombrias e severas, as altas chaminés negras perfilavam-se sobre o bairro como grossos varapaus.»
Como é que este homem, de origens extremamente humildes, órfão de pai e mãe desde os 10 anos, altura em que começa a trabalhar para sobreviver - como sapateiro, jardineiro, estivador, padeiro, lavador de pratos num navio (onde veio a ter contacto com alguns livros, emprestados pelo cozinheiro, que despertaram a sua consciência política) - e sem mais instrução do que os primeiros anos da escola primária conseguia escrever assim, não sei. São os mistérios dos grandes talentos naturais.
Pontuação: 9/10
Sinopse aqui

também adoro este livro
ResponderEliminarSe fosse eu a escrever um comentário sobre este livro seria quase idêntico ao que li. Também comigo foi um livro que me formou. Li-o no final da adolescência. Ficou-me sempre na memória a dureza da vida dos operários e a maneira como quase sem darem por isso adquirem a sua consciência política. A relação entre a mãe e o filho Pável é muito ternurenta. O que mais me agradou no teu comentário foi que escolheste exactamente o mesmo excerto que eu escolheria se fosse eu a escrever o comentário!
ResponderEliminarEste excerto é de uma clareza atordoante. Talvez também – mas não apenas – porque todos, de alguma forma, já vivemos isto, de querermos exprimir qualquer coisa e não o sabermos fazer. Também nisto a literatura tem um poder tremendo de conferir uma forma e um sentido a coisas que, por vezes, apenas conseguimos intuir.
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