Memórias do Subterrâneo (Fiodor Dostoiévski)

Quase tudo neste livro é incómodo. O protagonista começa por dizer que é um homem doente, repulsivo, «acho que tenho alguma coisa no fígado. De todo o modo, não entendo que raio de doença é a minha, não sei ao certo o que me faz sofrer». É um homem amargo, mais do que outra coisa. Que vê a vida - a sua, a dos outros - toldada por essa mesma amargura áspera e corrosiva com que conduz a sua vida. 

Poucos livros me causaram tanto desconforto como este. Em Busca do Tempo Perdido, que abandonei nas primeiras páginas, terá sido outro vencedor nesta categoria, à semelhança de O Estrangeiro, de Camus e Escuta Zé Ninguém, de Wilhelm Reich, que apesar de tudo (em ambos os casos) levei até ao fim.

Há qualquer coisa de profundamente autodestrutivo no pensamento e no comportamento do protagonista que acompanhamos ao longo destas 190 páginas, um negrume espesso, viscoso, difícil de dissipar, que tolhe, desconcerta e desalenta.

É efetivamente um homem doente que nos fala, através da pena de Dostoiévski. Não do fígado, conforme supõe, mas da alma. Essa mesma alma turva e disfuncional que o leva a submeter-se às mais ignóbeis vilanias - por si autoimpostas - sem que se descortine outra razão que não seja um aparente desejo de autopunição, acoberto da vontade de provar a si próprio, ou pior do que isso, aos outros - esses outros que despreza - algo de irrisório, para não dizer absurdo e supérfluo.

«Passar-se-iam dez, vinte anos, quarenta anos, é mesmo dentro de quarenta anos eu me lembraria com nojo, com aviltamento desses minutos, os mais ignóbeis, os mais ridículos e os mais apavorantes da minha vida.»

Num segundo momento o protagonista dá uma outra forma - apesar de tudo mais saudável - à sua angústia, desespero e azedume, transformando-o numa espécie de fogo fátuo que dirige a uma figura feminina em quem investe de forma obstinada, um pouco descabida e irrefletidamente. A narrativa assume assim um caminho mais leve, menos autolesivo - e por isso mais fácil de acompanhar - pese embora o logro em que assumidamente assenta este novo rumo e do desfecho que o mesmo manifestamente terá.

«O homem é uma criatura leviana e pouco escrupulosa e, talvez, à semelhança do xadrezista apenas goste do processo de ir para determinado objetivo e não do objetivo em si.»

Enfim, Dostoiévski é um mestre da narrativa, da descrição de estados de alma - dos mais negros e perturbados aos mais sublimes e elevados - e isso passa para o leitor. Se são as linhas de esgoto que descreve, é certo que sentiremos náuseas. Se, ao invés, for o êxtase e o júbilo, é isso que nos fará sentir. E entre uma coisa e outra, vai revelando aquilo que faz dele um dos grandes nomes da literatura mundial de todos os tempos. Não obstante, e apesar do pouco que li dele, diria que não será o melhor livro de Dostoiévski. Espero em breve vir a pegar em algo mais substancial.

Pontuação: 7/10
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2 comentários:

  1. Eu li o "Jogador" há muitos anos, e no fim do ano passado li o "Crime e Castigo", ambos editados pela Presença com a tradução brilhante de Filipe Guerra e Nina Guerra. Um dos melhores livros que li.
    O Dostoiévski é mesmo um mestre na descrição dos estados de alma. No "Crime e Castigo" parece que entramos dentro da alma perturbada da personagem principal. O meu próximo do Dostoiévski vai ser os "Irmãos Karamazov" também traduzidos pelo FIlipe Guerra e a Nina Guerra. Fica a sugestão!

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  2. Lá chegarei! O Crime e Castigo - de que tenho ouvido as opiniões mais apaixonadas - antes de qualquer outro. Os Irmãos Karamazov depois - sobre este disseram-me que era importante encontrar uma forma de não nos perdermos na multiplicação de nomes, alcunhas e diminutivos dos personagens. Vou munir-me de um lápis de carvão quando começar.

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