A Gorda (Isabela Figueiredo)

O que faz um bom livro? É a sensação que fica, diria eu. A curiosidade que suscita e nos faz voltar a ele também, claro. A história que conta é para mim, sempre, a parte mais irrelevante. Por isso, talvez, a maior parte dos livros de que gosto não me lembro da história. Havia mesmo uma história? São as sensações que vivemos quando lhe pegamos, as que ficam connosco, mais do que tudo. Que nos transformam de certa maneira, que interiorizamos e recordamos quase como se fossem genuinamente nossas.

«Escuta: a liberdade não existe, a felicidade não existe. Nunca a encontrarás. O que tens nunca te será suficiente.» Estou longe de perceber que o senhor diretor tem razão, e mais longe ainda de compreender que é possível conquistar ilhas de liberdade e gozá-las momentaneamente. Não posso saber, ainda, que nos cabe a nós a responsabilidade de estabelecer as fronteiras da liberdade que nos permitimos gozar.

A Gorda é mais um desses livros de que não recordo a história. Recordo uma sucessão de angústias, bem geridas, arrumadas e revisitadas ao longo das páginas onde a autora se coloca como se as estivesse a viver hoje, e nós com ela, no papel de ouvintes (neste caso, leitores). 

A angústia de se ter menos do que se desejava, de se sentir menos do que ambicionava. A sensação de se ir buscar forças onde não se sabe e que se desconhecem. A sabedoria de se lidar com aquilo que se tem, sem permanentemente se concentrar no que não se tem. 
O atordoamento da descoberta de si, dos outros e do meio que nos rodeia. A frustração de a vida não ser como a imaginávamos, já para não dizer como a desejávamos. 

A mamã ensinou-me a viver na clausura. Explicava-me, «nunca temos amigos» (...) Contrariando a mamã, demasiado pessimista para o meu gosto, sempre procurei os outros obsessivamente. Sempre insisti e muitas vezes me impus. E também coloquei a milhas quem bem me apeteceu, quem não correspondeu às minhas altíssimas expectativas. Crua, objetiva e impiedosamente.

Todas estas sensações estão presentes na narrativa de Isabela Figueiredo, que decorre numa cidade dos subúrbios de Lisboa, amada em todas as suas falhas e imperfeições, tal como a vida ali discorrida. 

Pontuação: 7/10
Sinopse aqui

A mulher que correu atrás do vento (João Tordo)

Esta foi mais uma primeira experiência impulsionada pelo meu grupo de leitura que se revelou uma absoluta e deliciosa surpresa. Há algum tempo que tinha vontade de pegar em João Tordo, mas a urgência de ler os mais antigos foi sempre adiando este propósito. 

João Tordo tem uma escrita envolvente, criando ambientes onde apetece estar, aos quais apetece voltar de cada vez que o quotidiano, nas suas múltiplas e incessantes exigências, nos faz afastar. Neste que é um dos seus romances mais recentes, traz-nos a história de quatro mulheres, cujos destinos se cruzam e entrelaçam. 

Lia foi, de longe, a personagem de que mais gostei. Filha de uma mulher que não quis ou não conseguiu ser mãe, ficou entregue a uma instituição a partir dos quatro anos de idade. A primeira vez que a ouvimos é numa consulta de psicoterapia onde fala sobre esta sensação de não ter sido desejada, cuidada, acarinhada, em criança. E de não o ser ainda, na idade adulta, ao reencontrar a mãe, uma mulher autocentrada, focada na carreira artística onde se alimenta das luzes e da adulação do público, incapaz de ver - de olhar - de se dar ou desejar a filha, que permanece uma estranha diante de si.

A leitura da sua história foi, para mim, muito emotiva, pela forma genuína como se mostra escrita. Lia é uma mulher desinvestida, mal amada, abandonada e por isso, também abandónica de tudo o que faz e a que se dedica. É um retrato realista, duro e muito bem conseguido, que obriga a respirar fundo ao longo da leitura.

A Gertrudes não fez perguntas, deixou-me chorar à vontade. Às vezes é tudo o que precisamos, certo? Alguém que não faça perguntas, que nos deixe lamentar à vontade sem nos julgar, se estamos certos ou errados, alguém que não tenha solução nem panaceia, nenhum elixir mágico para a nossa tristeza. Alguém que consiga abarcar a nossa angústia em toda a sua plenitude, ali sentada, a descascar batatas enquanto uma pessoa se desfaz em pedaços.

Também Beatriz, uma mulher em (re)construção - a braços com uma realidade demasiado pesada para a sua frágil e debilitada estrutura - é uma figura cativante, pela sua singular combinação de vulnerabilidade e força. João Tordo parece dotado de uma extraordinária sensibilidade para a construção dos personagens, revelando aquilo que cada um tem de menos visível, nos recantos mais ocultos e bem guardados da alma humana, prendendo-nos neste mergulho hipnótico pelas profundezas de cada um.

Pontuação: 8/10
Sinopse aqui

A Louca da Casa (Rosa Montero)

A Louca da Casa é um livro sem género. Não é romance, não é ensaio, não é autobiografia, mas é um pouquinho de cada uma destas coisas. É um encadeamento de textos onde a autora nos fala sobre um conjunto de temas - a criação literária, a imaginação, a loucura - daquela forma muito próxima que nos faz sentir que estamos à conversa. 

A essência da loucura é a solidão. Uma solidão psíquica absoluta que provoca um sofrimento insuportável. Uma solidão tão superlativa que não cabe dentro da palavra solidão e que não pode ser imaginada por quem não a conheceu.

O ofício da escrita é um dos temas sobre os quais Rosa Momento mais se debruça, tanto numa perspectiva pessoal, como histórica, evocando alguns dos episódios ou vivências - uns mais trágicos, outros mais felizes ou caricatos - de diversos espíritos criativos do passado.

Que o fracasso faz adoecer, que o fracasso mata, é uma coisa que nos parece fácil de entender; mas o caso é que o sucesso também pode acabar connosco (...). De facto, o sucesso é uma característica do olhar dos outros (...). Uma vez colocados sob esse feixe de luz procedente do olhar dos outros, costumamos, humanos, desejar que o foco não se apague e isso coloca-nos numa situação de fraqueza e dependência.

Igualmente interessante é o périplo que a autora faz pela desconstrução de algumas das convenções sociais e atrocidades culturalmente aceites no passado mais recente, sempre com uma acutilância meiga e certeira.

Na realidade, o que deitou a perder o bom Zola  [que recusou assinar o manifesto de apoio a Óscar Wilde, condenado a dois anos de cadeia por ser homossexual] foi o preconceito. Porque os nossos preconceitos nos aprisionam, nos diminuem, nos idiotizam; e quando esses preconceitos coincidem com a convicção majoritária, transformam-nos em cúmplices do abuso e da injustiça, como no caso de Wilde.

Pontuação: 7/10
Sinopse aqui

Ethan Frome (Edith Wharton)

Precisei de algum tempo para digerir e conseguir escrever sobre este livro, que descobri através de um blog de que já aqui falei, onde recolhi muitas e boas sugestões de leitura nos últimos tempos.

O início provocou-me um imenso entusiasmo, é um livro muito bem escrito, que nos transporta para os cenários descritos e nos coloca ao lado dos personagens que os habitam. A história, porém, é de uma violência emocional e uma tristeza tão lúgubre, que se torna difícil definir o sentimento que fica no final da leitura.

Ethan Frome é um homem triste, soturno e solitário - havia no seu rosto um não sei quê de deserto inacessível - que conhecemos no início da história como um ser retirado do mundo, a quem um acidente - que não conhecemos ainda - estropiou e marcou de forma permanente.

O narrador, chegado a esta povoação isolada do Massachusetts, fustigada pelo frio e pela neve, aproxima-se desta enigmática figura de forma circunstancial e acaba por conhecer a sua trágica história, que aqui nos é apresentada.


Senti simplesmente que ele vivia num abismo de isolamento moral demasiado distante para se poder chegar-lhe através de uma banal conversa, e tive a impressão de que tamanha solidão não resultava apenas do seu destino pessoal, por muito trágico que o adivinhasse, mas tinha em si, como sugerira Harmon Gow, o frio acumulado de muitos Invernos de Starkfield.

A história é a de um amor ilícito, reprimido, que traz um foco de luz quente, uma centelha de alegria e esperança aos dias frios e cinzentos de Ethan, preso num casamento vazio, com uma mulher tacanha, amarga e gélida.

A chegada a sua casa de uma vida jovem e esperançosa foi como um lume aceso em lareira fria, mas não só. A rapariga era mais do que a criatura alegre e prestável que Ethan vira nela. Mattie tinha olhos para ver e ouvidos para escutar: ele podia mostrar-lhe coisas e contar-lhe coisas, e saborear as delícias de sentir que tudo o que partilhava com Mattie deixava nela longas reverberações e ecos, prontos a deixar-se despertar sempre que ele entendesse. 

Um amor que acaba por conduzir a uma zona de impasse angustiante e a um desfecho dramático, irreflectido e lúgubre.

A paixão da rebeldia irrompera de novo no seu peito. (...) Sentiu a sua virilidade amesquinhada pelo papel que o obrigavam a desempenhar e pela ideia do que Mattie devia pensar a seu respeito. No trajecto até à aldeia, debatiam-se no seu coração ímpetos confusos. Estava decidido a fazer alguma coisa, mas não sabia bem o quê.  

Pontuação: 8/10
Sinopse aqui 

A arte de não amargar a vida (Rafael Santandreu)

A arte de não amargar a vida é um pequeno grande livro que nos ensina esta coisa tão simples e tão complexa, por vezes tão difícil de gerir e que ninguém ensina formalmente - sendo embora a tarefa mais exigente que temos pela frente - que é viver.

Quando desejamos em excesso, depositamos nisso expectativas exageradas e, mais tarde ou mais cedo, acabamos por nos desiludir: isso não nos faz felizes. 

Numa linguagem simples, acessível e cativante, Rafael Santandreu aborda as principais distorções cognitivas que estão na base de muito do mal-estar que por vezes chega à consulta de psicoterapia, em forma de nós intrincados e aparentemente difíceis de desatar.

O principal inimigo dos psicólogos é o denominado neuroticismo, isto é, a arte de se afligir através da tortura mental.

Estará tudo na nossa cabeça? Sim, em parte, é isso que este livro nos diz. Tudo depende do diálogo interno de cada um. É o diálogo interno o verdadeiro produtor - por vezes oculto - das emoções

Pontuação: 8/10
Sinopse aqui 

A Única História (Julian Barnes)

Preferiam amar mais e sofrer mais ou amar menos e sofrer menos? Podem lembrar - e bem - que não é uma verdadeira questão. Porque não podemos escolher. Quem consegue controlar o quanto ama? Se conseguirmos controlar não é amor. Não sei que nome tem, mas não é amor.

Assim começa a história que o autor se propõe contar. A única que verdadeiramente importa, segundo nos diz. Esta foi a minha estreia com Julian Barnes, apesar de ter outro livro dele na estante, comecei por este que me despertou o interesse por este início tão contundente.


Tal como acredito que o nosso amor é único, acredito que os nossos problemas - os problemas dela - são únicos. Sou demasiado jovem para compreender que todo o comportamento humano assenta em padrões e categorias e que o caso dela - e meu - está longe de ser único.

O desenrolar, porém, ficou um pouquinho aquém daquilo que esperava. Por já ter lido excelentes críticas ao autor e por se tratar de um tema que a mim me cativa muito, a expectativa estaria, talvez, um pouco elevada.

Não vi o pânico que estava dentro dela. Como podia adivinhar? Pensei que era só dentro de mim. Vejo, já tarde, que ele está em toda a gente. É condição da nossa mortalidade. (...) O pânico encaminha uns para Deus, outros para o desespero, alguns para obras de caridade, outros para a bebida, uns para o desapego emocional, outros para uma vida onde esperam que nunca nada de grave volte a perturbá-los.

Tenho sempre dúvidas em escrever sobre um livro de que não gostei particularmente, porque, na verdade, a minha experiência pode ser diametralmente oposta à experiência de qualquer outro leitor, razão pela qual, habitualmente, opto por escrever sobre aqueles de que mais gostei, por forma a não desmotivar ninguém da sua própria incursão e descoberta (como já me aconteceu, por mais do que uma vez - e com alguma pena minha - face a uma apreciação negativa).

Compreendera que o amor, até o mais ardente e o mais sincero, pode, quando sujeito a um ataque certeiro, coalhar numa mistura de piedade e cólera. O seu amor desaparecera, afastara-se mês a mês, ano a ano.

Apesar de alguns segmentos e reflexões muito interessantes, faltou, quanto a mim, alguma profundidade aos personagens - que por vezes não conseguimos bem perceber ou caracterizar - assim como algum sentido de coesão ao longo da história, que fica com grandes espaços em branco, aparentemente por preencher.

Pontuação: 6/10
Sinopse aqui