Seda (Alessandro Baricco)

Quanto de ilusão, desejo e fantasia conseguimos projectar no outro? Quanto de uma vida é constituída à base desta realidade que não existe senão no nosso imaginário, no mundo interior que cada um vai erigindo?

Doeu-lhe ouvir, no fim, Hervé Joncour dizer baixinho:
- Nunca ouvi a sua voz uma única vez.
E de seguida:
- É uma dor estranha.
Devagar.
- Morrer de saudades de uma coisa que nunca se irá viver.

Baricco traz-nos uma história de ilusão, suave como a seda, que delicadamente se tece e nos embala. Uma história de descoberta de um mundo diferente, longínquo, inacessível. 

Hervé, o jovem protagonista, deixa-se seduzir pela envolvência desta estranheza, pelo arrebatamento do desconhecido, pela delicadeza do inalcançável, deixando-se inebriar pelo mundo do sonho e da fantasia, sem que isso, aparentemente o desvie do seu caminho.

Mil vezes procurou os olhos dela, e mil vezes ela encontrou os dele. Era uma espécie de dança triste, secreta e impotente. Hervé Joncour dançou-a até ser noite funda, depois levantou-se, disse uma qualquer frase em francês para se desculpar (...) e foi-se embora.

Mais importante do que isso, sem que o seu caminho se desvie dele.

Pontuação: 7/10
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Vida Desfeita (Sonali Deraniyagala)


Um dia entrei na Fnac e perguntei se tinham o livro "Yoga para Nervosos". O rapaz que me atendeu disse-me que não, pelo que lhe perguntei (sem que me ocorresse nada de melhor) se tinham uma secção sobre Yoga (para que pudesse ir lá espreitar, desconfiando daquela resposta tão pronta), ao que me respondeu «Não, mas temos uma secção para nervosos». Foi o momento mais humorístico que tive numa livraria, ainda hoje me recordo dele com carinho!

Este seria seguramente um livro que não encontraria nessa tal secção. Passei as primeiras cinquenta páginas a chorar - baba e ranho - quase ininterruptamente. Pausando, de vez em quando, para me recompor e retomando pouco depois, quando me sentia capaz de prosseguir, para de novo interromper, umas páginas mais adiante, já sem conseguir discernir as letras à minha frente.

Trata-se do relato, na primeira pessoa, de uma mulher que se encontrava de férias no Sri Lanka com os pais, o marido e dois filhos, quando se deu o tsunami, em 2004. Sonali foi a única sobrevivente da família e o seu mundo ficou dividido entre um antes e um depois da catástrofe. É entre estes dois espaços temporais que a narrativa se desenvolve, evocando os momentos simples, mundanos, insuspeitadamente felizes e o regressar a uma vida que colapsou, que não se sabe como retomar sem aqueles que faziam parte dela, que lhe davam sentido, em que se alicerçava toda uma existência.

«Houve uma série de primeiras vezes. A primeira vez que desci as escadas de casa da minha tia, assustada, sabendo que não veria uma pilha de sapatos junto à porta de entrada, como havia em nossa casa. A primeira vez que vi dinheiro. Estava como o meu amigo David, (...) estremeci ao ver a nota de cem rupias na sua mão. Da última vez que vi uma nota daquelas, eu tinha um mundo»     

Se o choro é terapêutico, então este livro é uma espécie de terapia imersiva profunda. E uma lição de vida e superação, de humildade perante as nossas zangas e revoltas - tão pequenas, tão insignificantes - quando vistas em perspectiva.

Pontuação: 7/10
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Lolita (Vladimir Nabokov)

Wook.pt - Lolita
Li este livro há já alguns anos e pouco retenho da história, mas aquilo que me ficou e nunca mais esqueci foram sensações. As mais incríveis. A sensação de um calor abrasador, a letargia e languidez dos personagens, uma certa luminosidade que ainda hoje me parece reconhecer nalguns dias de verão...

Polémicas à parte - porque, objectivamente, o enredo é sobre uma relação ilícita (jurídica e moralmente falando) e a todos os níveis condenável - a verdade é que, do ponto de vista literário, estamos perante uma obra prima.

Um livro que consegue incutir no leitor imagens de uma tal vivacidade e intensidade que nos parece, mesmo à distância de muitos anos, que surgem diante de nós como se as tivéssemos visto e sentido na primeira pessoa é, quanto a mim, a expressão máxima da sublime arte literária.

O sol implícito pulsava nos choupos; estávamos fantástica e divinamente sós. Olhei-a, envolta na poalha rósea-dourada, para além do meu prazer controlado, inconsciente dele, alheia a ele, o sol brincava nos seus lábios, e os seus lábios continuavam, aparentemente, a formar as palavras da cantilena Carmen-barmen que já não alcançavam o meu inconsciente.

Vi o filme (de Adrian Lyne) há alguns anos também e - como habitualmente acontece - não reflectia minimamente a densidade da narrativa. Talvez porque, neste caso (como em outros) aquilo que mais impressiona é a descrição do que se passa no interior dos personagens - o que pensam, o que sentem, as lutas que travam interiormente - e isso é difícil de reproduzir em imagem.

A este respeito, José Riço Direitinho observa, na crítica que faz ao último romance de Javier Marías, que a acção narrada torna-se reduzida, algumas cenas descritas parecem quadros ou cenários imóveis, como se fosse necessário parar o tempo para se conseguir perceber melhor a vida. É este efeito de fragmentação da acção, de escrutinação de pequenos segmentos temporais, com um detalhe e uma precisão inusitados que Nabokov também provoca, catapultando-nos para o âmago dos acontecimentos, onde eles realmente acontecem - na sua génese - muito antes de tomarem forma no mundo exterior.


Pontuação: 10/10
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Minha Ántonia (Willa Cather)

Minha Ántonia não foi a experiência de leitura que esperava. Talvez por não ser este o tipo de narrativa que imaginei que ia encontar. Apesar de tudo (e isto deve querer dizer qualquer coisa, li-o em três dias).

A história é-nos trazida por Jim, que se encontra numa viagem de comboio com um amigo de infância (passada numa zona rural do Nebrasca) que o leva a recuperar as memórias do que aí viveu, a partir dos 10 anos de idade, em casa dos avós que o acolheram na sequência da morte dos pais.


Durante esse dia sufocante em que atravessamos o Iowa, a nossa conversa foi sempre parar a uma figura central, uma figura boémia que ambos conheceramos muitos anos antes.

Em torno desta figura central, que conheceu no dia em que chegou a esta terra agreste, por desbravar - aqui muito bem caracterizada - o narrador recua até esse periodo da sua vida, recuperando um conjunto de episódios e vivências marcadas, numa primeira fase, pela simplicidade e a perspetiva muito realista de uma criança de 10 / 12 anos, o que torna a narrativa - nesta parte inicial - pouco elaborada e muito presa ao nível do concreto e observável.

Ántonia, igualmente chegada a esta terra de colonos e apregoadas oportunidades, acaba por seguir um rumo distinto de Jim, que entra para a escola pouco tempo depois, enquanto Ántonia permanece ligada ao trabalho da quinta, onde é esperado que ajude a mãe e os irmãos, e como criada ao serviço de uma família, mais tarde:


Nenhum dos meus colegas de escola era propriamente interessante, mas de alguma maneira eu sentia que, ao travar amizade com eles, estava a vingar-me da indiferença de Ántonia para comigo.

À medida que Jim se desenvolve, também a leitura que faz do mundo se aprofunda, tornando a narrativa mais densa e apelativa:

Esse modo de vida cauteloso era como viver sob um regime de tirania. Os discursos das pessoas, as suas vozes, os seus próprios olhares tornavam-se furtivos e reprimidos. Cada gosto individual, cada apetite natural, era refreado pela cautela. As pessoas que viviam no interior dessas casas, pensei, tentavam viver como os ratos que habitavam as suas cozinhas; sem fazerem barulho, sem deixarem rasto, passando por cima das coisas na escuridão.

O final tem uma tonalidade especialmente doce, de reencontro com os afetos de uma vida passada, de ressignificação e atar de pontas soltas, de reflexão sobre o espaço que as memórias (e as pessoas dentro delas) ocupam em nós. E de como, por vezes, essas memórias se revelam mais vívidas, mais presentes e valiosas do que todas as vivências que lhe sobrevenham.

Pontuação: 7/10
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Longe da Multidão (Thomas Hardy)

Longe da Multidão foi a minha primeira experiência com Thomas Hardy. Há muito que desejava ter lido Tess dos D'Urbervilles, então ausente das livrarias portuguesas - omissão que a Relógio D'Água veio suprir com a edição lançada em 2019.

Creio que foi com algum receio que me lancei na leitura deste livro - tinha terminado o Parque de Mansfield, da Jane Austen (um dos últimos que ainda me restavam desta autora de quem tanto gosto) e queria muito voltar ao período Vitoriano, de onde me custa sempre sair no final de cada romance, pelo que foi uma escolha impulsiva, em modo ressaca, apesar de já o ter na estante há algum tempo.

Os receios depressa se mostraram infundados. Thomas Hardy é um recriador de cenários extraordinário e possuidor de uma mestria inigualável na reprodução de estados anímicos e afectivos. Foi aqui que descobri uma das melhores descrições de paixão de que tenho memória: é não ser capaz de pensar, ouvir ou olhar em mais nenhuma direcção, a não ser uma, sem cair na melancolia, e, nesse caso, não estar a salvo da tortura.

Isto foi dito pelo Sargento Troy, um homem lisonjeador, tão ao jeito da Inglaterra Vitoriana, e tão nefasto nessa precisa época em que as mulheres eram vistas como frágeis presas, sujeitas a cair no logro do terrível predador e a ficarem, a partir daí, perdidas para todo o sempre.

E se por acaso dermos por nós a questionar Mas porque razão ficariam perdidas? Que absurdo é esse de ter caído em desgraça por ter beijado ou - infâmia suprema - se ter deitado com um homem que afinal não a veio a desposar?, talvez não seja por acaso. Na época, eram estas as convenções sociais vigentes, e Hardy procurava denunciar isso mesmo através dos seus romances: a forma como a sociedade se organizava entre si, o tipo de padrões a que cada um obedecia e se submetia de forma acrítica, originando este todo colectivo opressivo, punitivo e castrador - para nós hoje - claramente desajustado e causador de tanto sofrimento.  

Havia algo de tão singular e arrepiante na dor infantil e singela deste apelo, vindo de uma mulher com o calibre e a independência de Bathsheba, que Troy, libertando o pescoço dos seus braços firmes, olhou para ela confuso.

Bathsheba, a protagonista deste romance, vê-se objecto de um amor sincero e devotado por parte de Gabriel Oak (um homem simples e humilde, junto de quem despertou esse sentimento de forma leviana e inconsequente), e do afeto insuflado e galante do Sargento Troy, que pouco mais vê do que a sua necessidade de alimento para um ego insaciável, que vai semeando sofrimento por onde passa.  

A intensidade do sentimento é proporcional à grandeza do carácter e, apesar de todo o seu sofrimento, que não cabia nas forças que tinha, Fanny talvez não tivesse conhecido, num sentido absoluto, a dor que Bathsheba sentiu naquele instante.

Berthsheba é, à semelhança das grandes protagonistas da história da literatura, uma mulher à frente do seu tempo. Perseverante e determinada, não se subsume aos padrões instituídos, exercendo o direito a viver nos seus próprios termos e rejeitando o papel que a sociedade lhe atribuiu. Uma personagem que se ergue tantas vezes quantas aquelas que tomba e sai fortalecida de cada uma dessas vezes. E dá gosto assistir a esse processo, a esta vivência tão bem descrita e abordada por Thomas Hardy.

Pontuação: 9/10
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