O Livro
de Desassossego foi mais um daqueles livros que me vieram parar às mãos na
juventude, quando passava os olhos pelas prateleiras da biblioteca da faculdade
onde estudava. Foi um choque, uma surpresa e
um deslumbre imediatos.
Um choque, em parte, por
perceber que havia alguém capaz de pôr por escrito um conjunto de pensamentos
tão esdrúxulos, complexos, retorcidos e inusitados - como aquele que tinha
diante dos olhos - com tamanho acerto e propriedade. Uma surpresa por encontrar
um livro assim numa faculdade de Direito - tão rígida e
cinzenta na sua base - e por ter ido dar com ele, aleatoriamente, no meio de
tantos outros.
A verdadeira
experiência consiste em restringir o contacto com a realidade e aumentar a
análise desse contacto. Assim a sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em
nós está tudo; basta que o procuremos e o saibamos procurar.
Bernardo Soares escreve em prosa (alega que o verso é limitado por
leis rítmicas como uma espécie de resguardos, coações, dispositivos automáticos
de opressão e castigo) produzindo um conjunto de textos dispersos, fragmentos quebrados e
desconexos, contendo essencialmente impressões da sua vida interior (in Introdução),
que veio a apelidar de autobiografia sem factos.
«Jamais
outro escritor conseguiu passar, de modo tão directo e nítido, a sua alma para
a folha escrita» (ibid.) e é esta alma, esta vida interior tumultuosa,
densa, simultaneamente emaranhada e profundamente lúcida que aqui nos é dado conhecer.
O cansaço de todas as
ilusões e de tudo que há mas ilusões - a perda delas, a inutilidade de as ter,
o antecansaço de ter que as ter para perde-las, a mágoa de as ter tido, a
vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim.
Fica a advertência de que deve ser lido com moderação. E pode ter contra-indicações. Não se destina a ser lido de seguida, de uma ponta à outra. É para se ir lendo aos poucos, fraccionadamente, permanecendo atento a possíveis efeitos secundários indesejáveis.
Pontuação: 9/10
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