Pássaros Feridos (Colleen McCullough)
Há tempos alguém me pedia que lhe recomendasse um livro - o que adoro fazer - e enquanto pensava, percorrendo mentalmente os títulos que de imediato me acorrem à memória, ouço esta única indicação: mas que não seja uma história triste! E com isto, todo o meu acervo mnésico colapsou, fiquei em branco...
Não é que não tenha lido já muitos livros de histórias felizes, ligeiras, mas são raros os que se ficam só por aí, e não são seguramente esses que ficam na memória. Talvez por serem aqueles que menos se assemelham à realidade, que nunca é feita exclusivamente de momentos felizes. Talvez não seja sequer maioritariamente feita desses momentos, que - além do mais - são sempre e apenas isso, momentos. Isto foi qualquer coisa que demorei a perceber, e a aceitar.
Scott Peck inicia O Caminho Menos Percorrido - que li há muitos anos - com esta singela consideração: A vida é difícil. E prossegue a partir daí. E isso, esta simples afirmação, foi extremamente libertadora, na altura em que a li. Percebi, finalmente, que não havia nada de anómalo no percurso que estava a fazer. Não se tratava de ter escolhido o caminho da direita, quando porventura devia ter escolhido o da esquerda, ou de estar a fazer qualquer coisa de errado para que tudo me parecesse, de certa forma, mais difícil do que imaginei que deveria ser. Ocorre-me também, a este propósito, um excerto do livro de Manuel Vilas que comentei aqui há dias e que me fez muito sentido:
Não basta, porém, uma vida de sofrimento para se alcançar esta consciência (no fundo, para se poder crescer), é preciso pensar sobre ele. Não fugir disso que nos aflige, mas antes, olhá-lo nos olhos, enfrentá-lo e dizer-lhe “Estou aqui, quem és tu e o que queres de mim?”
Pássaros Feridos é também - à semelhança de outros de que tenho falado aqui - um romance triste. É a história de uma família que se fixa num local remoto do interior da Austrália, centrando-se em particular na vida de Meggie, que conhecemos em criança, e vemos crescer - em estatura e em vida interior - e da paixão indómita que desenvolve (como quem contrai uma tuberculose, instalando-se progressiva e lentamente, ganhando raízes profundas, para não mais abandonar o peito em que se hospedou) por um jovem clérigo e como esse sentimento a acompanhará e moldará ao longo de toda a vida.
À semelhança do que dizia acima, Meggie não se limita a sofrer a desdita do destino, a vergar-se ao peso da dor e da frustração. A sua vida é objeto de reflexão, elaboração e luta. Apesar de tudo - e sem querer revelar mais do que devo - é uma história de renúncia, de contenção, mas também de resiliência, de afetos intensos e sublimes. Em todos os meus muitos top 10 de favoritos - que mudam constantemente - este está lá sempre.
Pontuação: 10/10
Sinopse aqui
Não é que não tenha lido já muitos livros de histórias felizes, ligeiras, mas são raros os que se ficam só por aí, e não são seguramente esses que ficam na memória. Talvez por serem aqueles que menos se assemelham à realidade, que nunca é feita exclusivamente de momentos felizes. Talvez não seja sequer maioritariamente feita desses momentos, que - além do mais - são sempre e apenas isso, momentos. Isto foi qualquer coisa que demorei a perceber, e a aceitar.
Scott Peck inicia O Caminho Menos Percorrido - que li há muitos anos - com esta singela consideração: A vida é difícil. E prossegue a partir daí. E isso, esta simples afirmação, foi extremamente libertadora, na altura em que a li. Percebi, finalmente, que não havia nada de anómalo no percurso que estava a fazer. Não se tratava de ter escolhido o caminho da direita, quando porventura devia ter escolhido o da esquerda, ou de estar a fazer qualquer coisa de errado para que tudo me parecesse, de certa forma, mais difícil do que imaginei que deveria ser. Ocorre-me também, a este propósito, um excerto do livro de Manuel Vilas que comentei aqui há dias e que me fez muito sentido:
“Dou-me conta neste
instante de que aconteceram grandes coisas na minha vida e, no entanto, carrego
um sofrimento profundo. A dor não é de todo um entrave à alegria, tal como eu
entendo a dor, pois para mim está vinculada à intensificação da consciência. O
sofrimento é uma consciência expandida, que alcança todas as coisas que foram e
serão.”
Não basta, porém, uma vida de sofrimento para se alcançar esta consciência (no fundo, para se poder crescer), é preciso pensar sobre ele. Não fugir disso que nos aflige, mas antes, olhá-lo nos olhos, enfrentá-lo e dizer-lhe “Estou aqui, quem és tu e o que queres de mim?”
Pássaros Feridos é também - à semelhança de outros de que tenho falado aqui - um romance triste. É a história de uma família que se fixa num local remoto do interior da Austrália, centrando-se em particular na vida de Meggie, que conhecemos em criança, e vemos crescer - em estatura e em vida interior - e da paixão indómita que desenvolve (como quem contrai uma tuberculose, instalando-se progressiva e lentamente, ganhando raízes profundas, para não mais abandonar o peito em que se hospedou) por um jovem clérigo e como esse sentimento a acompanhará e moldará ao longo de toda a vida.
À semelhança do que dizia acima, Meggie não se limita a sofrer a desdita do destino, a vergar-se ao peso da dor e da frustração. A sua vida é objeto de reflexão, elaboração e luta. Apesar de tudo - e sem querer revelar mais do que devo - é uma história de renúncia, de contenção, mas também de resiliência, de afetos intensos e sublimes. Em todos os meus muitos top 10 de favoritos - que mudam constantemente - este está lá sempre.
Pontuação: 10/10
Sinopse aqui
Memórias do Subterrâneo (Fiodor Dostoiévski)
Quase tudo neste livro é incómodo. O protagonista começa
por dizer que é um homem doente, repulsivo, «acho que tenho alguma coisa no fígado. De todo o modo, não entendo que raio de doença é a minha, não sei ao certo o que me faz sofrer». É um homem amargo, mais do que
outra coisa. Que vê a vida - a sua, a dos outros - toldada por essa mesma
amargura áspera e corrosiva com que conduz a sua vida.
Poucos livros me causaram tanto desconforto como este. Em Busca do Tempo Perdido, que abandonei nas primeiras páginas, terá sido outro vencedor nesta categoria, à semelhança de O Estrangeiro, de Camus e Escuta Zé Ninguém, de Wilhelm Reich, que apesar de tudo (em ambos os casos) levei até ao fim.
Há qualquer coisa de profundamente autodestrutivo no pensamento e no comportamento do protagonista que acompanhamos ao longo destas 190 páginas, um negrume espesso, viscoso, difícil de dissipar, que tolhe, desconcerta e desalenta.
É efetivamente um homem doente que nos fala, através da pena de Dostoiévski. Não do fígado, conforme supõe, mas da alma. Essa mesma alma turva e disfuncional que o leva a submeter-se às mais ignóbeis vilanias - por si autoimpostas - sem que se descortine outra razão que não seja um aparente desejo de autopunição, acoberto da vontade de provar a si próprio, ou pior do que isso, aos outros - esses outros que despreza - algo de irrisório, para não dizer absurdo e supérfluo.
«Passar-se-iam dez, vinte anos, quarenta anos, é mesmo dentro de quarenta anos eu me lembraria com nojo, com aviltamento desses minutos, os mais ignóbeis, os mais ridículos e os mais apavorantes da minha vida.»
Num segundo momento o protagonista dá uma outra
forma - apesar de tudo mais saudável - à sua angústia, desespero e azedume,
transformando-o numa espécie de fogo fátuo que dirige a uma figura feminina em
quem investe de forma obstinada, um pouco descabida e irrefletidamente. A
narrativa assume assim um caminho mais leve, menos autolesivo - e por isso mais
fácil de acompanhar - pese embora o logro em que assumidamente assenta este
novo rumo e do desfecho que o mesmo manifestamente terá.
«O homem é uma criatura leviana e pouco escrupulosa e, talvez, à semelhança do xadrezista apenas goste do processo de ir para determinado objetivo e não do objetivo em si.»
Enfim, Dostoiévski é um mestre da narrativa, da
descrição de estados de alma - dos mais negros e perturbados aos mais sublimes
e elevados - e isso passa para o leitor. Se são as linhas de esgoto que descreve,
é certo que sentiremos náuseas. Se, ao invés, for o êxtase e o júbilo, é isso
que nos fará sentir. E entre uma coisa e outra, vai revelando aquilo que faz
dele um dos grandes nomes da literatura mundial de todos os tempos. Não obstante, e apesar do pouco que li dele, diria que não será o melhor livro
de Dostoiévski. Espero em breve vir a pegar em algo mais substancial.
Pontuação: 7/10
Sinopse aqui
Em tudo havia beleza (Manuel Vilas)
Manuel Vilas é um autor que vale a pena conhecer. Ao mesmo tempo que recupera imagens esquecidas da realidade espanhola das últimas décadas do século xx, Vilas abre-nos as portas para o seu mundo interior (denso e intrincado como habitualmente estes mundos são, mas ao mesmo tempo simples e elementar, como só o mundo da infância - à qual regressa - consegue ser, especialmente evidenciado na evocação de pormenores, detalhes em que se detém como se nada mais pudesse ocupar o seu campo perceptivo e emocional).
Acontece-me, por vezes, encontrar semelhanças entre autores de um determinado tempo e espaço (os russos são talvez um exemplo paradigmático). Também aqui encontro pontos de contacto - tanto ao nível dos temas (a perda e o luto), como no tom muito confessional - entre Vilas e Rosa Montero, que tanto prazer me deu ler há bem pouco tempo.
Vilas tem essa mesma escrita que envolve, que acolhe, por via da qual vai desfiando, devagarinho, aquilo que tem para nos dizer, regressando incessantemente aos recessos do passado, do seu mundo afectivo, episódico, individual, relacional e familiar - um mundo simultaneamente tão recuado e tão presente - sem pressas, sem um objectivo definido ou um plano traçado, que não o simples prazer ou necessidade de o fazer.
A arte - dizia Pessoa - consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. E é isto que Vilas faz, liberta-nos de nós por momentos, ao transportar-nos para debaixo da sua pele, fazendo-nos mergulhar nas suas reflexões, nas suas memórias - sem porém nos afastar de nós próprios, por força das pontes que lança na nossa direcção, por cada um dos momentos em que nos revemos, encontramos e descobrimos naquilo que escreve.
Em tudo havia beleza é uma majestosa peça de arte sob a forma escrita. Não daquelas peças tão preciosas, requintadas e frágeis que ficam confinadas a uma existência protegida e assética no interior de uma vitrine, mas daquelas que se podem tocar, sentir e usar no dia-a-dia.
Acontece-me, por vezes, encontrar semelhanças entre autores de um determinado tempo e espaço (os russos são talvez um exemplo paradigmático). Também aqui encontro pontos de contacto - tanto ao nível dos temas (a perda e o luto), como no tom muito confessional - entre Vilas e Rosa Montero, que tanto prazer me deu ler há bem pouco tempo.
Vilas tem essa mesma escrita que envolve, que acolhe, por via da qual vai desfiando, devagarinho, aquilo que tem para nos dizer, regressando incessantemente aos recessos do passado, do seu mundo afectivo, episódico, individual, relacional e familiar - um mundo simultaneamente tão recuado e tão presente - sem pressas, sem um objectivo definido ou um plano traçado, que não o simples prazer ou necessidade de o fazer.
«E essa é outra parte fundamental da minha pessoa: toda a vida me acompanhou o receio de ficar louco, de não saber racionalizar as coisas que me aconteciam, de que o caos me atropelasse.»
A arte - dizia Pessoa - consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. E é isto que Vilas faz, liberta-nos de nós por momentos, ao transportar-nos para debaixo da sua pele, fazendo-nos mergulhar nas suas reflexões, nas suas memórias - sem porém nos afastar de nós próprios, por força das pontes que lança na nossa direcção, por cada um dos momentos em que nos revemos, encontramos e descobrimos naquilo que escreve.
«Em criança (devido à minha personalidade em formação ou à minha timidez), eu sofria por não saber encontrar um lugar entre os demais, entre os colegas de escola, pensava sempre no meu pai e na minha mãe, confiando que eles tivessem uma explicação para a minha invisibilidade social. Eles eram os meus protectores e quem guardava o segredo da razão da minha existência, que a mim me escapava.»
Em tudo havia beleza é uma majestosa peça de arte sob a forma escrita. Não daquelas peças tão preciosas, requintadas e frágeis que ficam confinadas a uma existência protegida e assética no interior de uma vitrine, mas daquelas que se podem tocar, sentir e usar no dia-a-dia.
O Amor É - Para memória futura (Júlio Machado Vaz)
O amor é, foi, e continuará a ser o tema que mais me intriga em
toda a história do mundo e da humanidade. Em todas as suas múltiplas formas e
sentidos (o primeiro de todos: entre a mãe e o bebé, e qualquer um dos subsequentes: pais e filhos, avós e netos, irmãos, primos,
namorados, cônjuges, amigos, amantes, o amor que pomos naquilo que
fazemos, naquilo a que nos entregamos e dedicamos), os mais diversos e
variados.
Perdi a conta ao
número de livros que li sobre o assunto - o que é, o que não é, como se manifesta, como se cuida,
como se constrói, como se destrói, como se confunde, como
nos confunde - e nunca, até hoje, me senti suficientemente esclarecida.
"O Amor é"
foi, por isso, mais um livro que li entusiasmadamente sobre o tema. E
seguramente não foi o último. Júlio Machado Vaz e Inês Meneses mantêm, há
já alguns anos, um programa de rádio na Antena 1 - que apenas ouvi
amiúde - precisamente com o mesmo nome e estrutura e daí surge a ideia de
o fazerem por escrito.
O livro parte assim de
um conceito muito interessante e que resulta muito bem com a dupla que o
protagoniza. Pegando na letra de uma música ou num poema, ambos vão discorrendo sobre o
que ali se diz ou pretende dizer, sobre o que significa, o que faz pensar ou o
que faz lembrar e vão elaborando a partir deste mote tão rico quanto inesgotável.
A palavra tem grande importância na sedução. Um dos bons exemplos é o Cyrano de Bergerac. Quando o Christian diz a Cyrano que já não precisa dele, vai para debaixo da janela e diz a Roxane: "Eu amo-te!". E qual é a resposta dela? "Isso eu sei, diz-me mas é como!" Ela quer é a poesia! Ela quer o arranjo floral à volta daquele sentimento, que Christian não consegue dar, pois não tem intelecto nem arte para isso. E lá vem o Cyrano para desenvolver o tema.
Diz-se que através da
literatura temos a possibilidade de ouvir aquilo que têm para nos dizer as grandes
personalidades da história. É um pouco isso que se passa aqui (com as devidas
adaptações), são duas pessoas muito interessantes que estão à conversa sobre um
tema particularmente interessante - na verdade, três: o amor, a música e a poesia - a que temos o
privilégio de nos juntar.
Pontuação: 7/10
Sinopse aqui
A mãe (Máximo Gorky)
Este foi um livro que li há muito tempo, estava a iniciar-me no estudo do Direito, que poucas coisas teve de melhor do que pôr-me a ler pilhas de manuais, verdadeiros tijolos, que intercalava com outros livros que me vinham parar às mãos, não sei bem como (ainda não era o tempo da informação à distância de um clique) e com os quais me construía e humanizava. Era o início da idade adulta, quando todo um conjunto de coisas nos marcam de forma indelével e incomparável com qualquer outro período a partir daí.
O livro - emblemático por todo um conjunto de razões - versa sobre o período tão próximo e aparentemente tão longínquo da Rússia czarista, no início do séc. xx. Um tempo de desníveis e injustiça social extrema, condições de vida (social, laboral, cultural, pessoal, familiar) de uma atrocidade difícil de apreender ou imaginar, e se não houvesse razões literárias suficientes que justificassem a sua leitura, o mergulho histórico nos tempos de obscuridade, opressão, luta desigual e movimento embrionário de revolta e mudança que aqui se vivem seria suficiente, por si só, para a recomendar.
Mas Gorky (pseudónimo que significa “amargo”) é, além do mais, um autor de calibre excepcional, à semelhança de outros tantos do seu tempo e espaço, sublime na construção de personagens (na elaboração de cada pensamento, sentimento, cada ímpeto, inquietação e centelha de desejo que lhes atribui), na recriação de cenários (que se desenham à nossa frente com um realismo que impressiona), na edificação da história e na atribuição de sentido, profundidade e beleza a cada linha que redige.
Se há livros em que a primeira página é o suficiente para se perceber - do ponto de vista literário - o que temos à nossa frente, este é um deles, pelo que transcrevo o parágrafo inicial, a título ilustrativo:
Como é que este homem, de origens extremamente humildes, órfão de pai e mãe desde os 10 anos, altura em que começa a trabalhar para sobreviver - como sapateiro, jardineiro, estivador, padeiro, lavador de pratos num navio (onde veio a ter contacto com alguns livros, emprestados pelo cozinheiro, que despertaram a sua consciência política) - e sem mais instrução do que os primeiros anos da escola primária conseguia escrever assim, não sei. São os mistérios dos grandes talentos naturais.
Pontuação: 9/10
Sinopse aqui
O livro - emblemático por todo um conjunto de razões - versa sobre o período tão próximo e aparentemente tão longínquo da Rússia czarista, no início do séc. xx. Um tempo de desníveis e injustiça social extrema, condições de vida (social, laboral, cultural, pessoal, familiar) de uma atrocidade difícil de apreender ou imaginar, e se não houvesse razões literárias suficientes que justificassem a sua leitura, o mergulho histórico nos tempos de obscuridade, opressão, luta desigual e movimento embrionário de revolta e mudança que aqui se vivem seria suficiente, por si só, para a recomendar.
Mas Gorky (pseudónimo que significa “amargo”) é, além do mais, um autor de calibre excepcional, à semelhança de outros tantos do seu tempo e espaço, sublime na construção de personagens (na elaboração de cada pensamento, sentimento, cada ímpeto, inquietação e centelha de desejo que lhes atribui), na recriação de cenários (que se desenham à nossa frente com um realismo que impressiona), na edificação da história e na atribuição de sentido, profundidade e beleza a cada linha que redige.
«Nós, a gente do povo - explicou - sentimos tudo, mas é-nos difícil exprimi-lo, não podemos formar senão ideias incertas; e envergonhamo-nos de não poder dizer o que sentimos. E quantas vezes, para falar com consciência, a gente não se zanga com as próprias ideias e com aqueles que no-las sugere! Começamos a irritar-nos e afugentamo-las! Em que agitação se passa esta vida! É ela que por todos os lados nos assalta e nos magoa. Era tão bom descansar!... Mas os pensamentos não deixam à alma um só momento de repouso e ordenam-lhe que veja, que ouça.»
Se há livros em que a primeira página é o suficiente para se perceber - do ponto de vista literário - o que temos à nossa frente, este é um deles, pelo que transcrevo o parágrafo inicial, a título ilustrativo:
«Todos os dias, a sereia da fábrica lançava no ar fumarento e oleoso, por sobre o bairro operário, o seu vibrante rugido. E das pequenas casas escuras, obedecendo ao chamamento, saíam à pressa, como baratas assustadas, pessoas taciturnas, cujos músculos o sono não conseguia revigorar. Na penumbra fria, caminhavam pela rua mal pavimentada para a grande gaiola de pedra da fábrica que, serena e indiferente, as esperava, vigiando o caminho lamacento com as suas dezenas de olhos quadrados e viscosos. A lama estalava sob os pés. Ouviam-se exclamações roucas de vozes ensonadas, pragas grosseiras cortavam o ar, e ao encontro das pessoas chegavam outros sons: o ruído pesado das máquinas, o grunhido do vapor. Sombrias e severas, as altas chaminés negras perfilavam-se sobre o bairro como grossos varapaus.»
Como é que este homem, de origens extremamente humildes, órfão de pai e mãe desde os 10 anos, altura em que começa a trabalhar para sobreviver - como sapateiro, jardineiro, estivador, padeiro, lavador de pratos num navio (onde veio a ter contacto com alguns livros, emprestados pelo cozinheiro, que despertaram a sua consciência política) - e sem mais instrução do que os primeiros anos da escola primária conseguia escrever assim, não sei. São os mistérios dos grandes talentos naturais.
Pontuação: 9/10
Sinopse aqui
Berta Isla (Javier Marías)
Assim
como há quem escreva de forma sublime sobre o amor, Javier Marías escreve de
forma exímia sobre o desamor. São marcantes os retratos de relações
desapaixonadas, instrumentais, casuais ou fortuitas, que nos apresenta de forma
crua e despida de artifícios.
Relações que podiam ser, como podiam não ser - nunca teria feito muita diferença na vida dos personagens, no seu curso, nos seus afectos, na teia que constitui as suas vidas (a não ser por acidente ou mero acaso) - corpos que se encontram para desfrutar do prazer que podem proporcionar um ao outro, sem grande entusiasmo ou emoção envolvida (com ou sem esforço, nesse sentido, por parte dos protagonistas). Em Berta Isla não é este o tema central, mas está lá, assim como estava - de uma forma mais vincada - nos Enamoramentos, o primeiro livro que li dele.
«Permaneceram juntos pouco menos de uma hora, passando neste tempo de ilusão do anunciado à ligeira melancolia daquilo que recém-sucedido já não deixa recordação nem claro está saudades, e na verdade começou a estar a mais e a esquecer-se enquanto ainda está a acontecer: sexo higiénico e não elaborado (...), sexo apático uma vez consumado.»
Daqui resultam quadros pontuados por alguma tristeza ou melancolia, por vezes até uma certa perplexidade dos protagonistas. É este, pelo menos, o sentimento que sobressai aos meus olhos. Assim como há aqueles que encontram, acima de tudo, a beleza numa tarde cinzenta, fustigada pelo vento e pela chuva, também haverá quem veja aqui a beleza ou mesmo a alegria. A alegria de cada um dispor do seu corpo livremente, de gerir os seus afectos conforme lhe aprouver, porque não?
Igualmente brilhante é a captação das contradições humanas. O querer e o não querer - ao mesmo tempo ou com intervalos muito curtos entre si - e a estupefacção tantas vezes sentida por quem vive essas inflexões e contradições permanentes, velozes, difíceis de apreender ou explicar à luz de uma lógica puramente racional.
Não obstante, Berta Isla é um livro sobre uma mulher que ama e é amada. Sobre uma relação projectada na adolescência, quando, ainda jovem, o casal se conheceu e imaginou, até anos mais tarde, na vida adulta. Uma vida que não era aquela que desejavam, mas que foi aquela que se proporcionou e que ambos - Berta e Tomás, um homem que afirma ter escolhido pouco mais no seu destino, do que a mulher a quem se juntou - aceitaram e viveram, adaptando-se-lhe com todas as suas forças e na medida das suas limitações.
«Divertíamo-nos juntos, apesar das brumas e do nevoeiro que envolviam as nossas vidas. (...) Preferia ter parte dele do que despedir-me, perde-lo de vista definitivamente e que se transformasse numa recordação.»
Javier Marias tem um estilo muito próprio de nos prender à sua escrita, dificultando-nos a decisão de pousar o livro, de fazer uma pausa na leitura, quase como se não quiséssemos interromper o curso do seu pensamento, a reflexão em que se lançou, onde nos embrenhou, e é num ápice que chegamos ao fim, sem darmos conta disso.
Pontuação: 9/10
As Grandes Cartas de Amor (Elizabete Agostinho)
Começo por dizer que a leitura de uma compilação de cartas desta natureza, escritas pelo punho de tantas figuras extraordinárias - Proust, Tolstoi, Byron, Freud, Bethoven, Nietzsche, Stendhal, Dostóievski, Marx, etc - consegue ser perturbadora.
Parece que, de alguma forma, todos estão tomados por uma doença do espírito - como se tivessem contraído um mesmo vírus, com uma sintomatologia muito específica e similar entre si - que os deixa de certo modo atordoados, profundamente alterados, levando-os a escrever desta forma tão veemente e inflamada, tão convictos da certeza que os anima e irremediavelmente impele a dirigirem-se ao objecto amado, que muitas vezes é um hoje e é outro amanhã.
Com a particularidade que, entre a leitura de uma e outra destas missivas, para nós que as recebemos nesta maravilhosa compilação (que reúne documentos com mais de 200 anos) dista apenas um segundo, o tempo de um suspiro. O que aconteceu entre uma coisa e outra? Quão volátil é o ser humano? Quanto consegue iludir-se a si próprio e ao outro?
A escrita é soberba, mas mais do que a escrita, é a humanidade de cada uma das grandes figuras - que aqui surgem como personagens enlouquecidas, nas mãos caprichosas e erráticas do amor, do erotismo e da paixão - que se evidencia e impressiona.
Cada carta é antecedida de um pequenino texto que contextualiza as circunstâncias em que a mesma foi escrita, e é essa breve explicação - que em dois parágrafos resume um mundo de paixões, de intenções e trilhos percorridos - que por vezes consegue ser mais surpreendente do que a própria missiva em si (ou que torna a sua leitura ainda mais impressionante). Dois parágrafos que, tantas vezes e de um só fôlego, desmoronam a magnífica edificação de desejo e ensejo que então tomava lugar no peito de quem escreveu cada uma destas cartas, que agora podemos ler à distância de uma vida.
Pontuação: 8/10
Sinopse aqui
«Não deixa de ser amor, mesmo quando é unilateral. O que é absolutamente surpreendente é a resiliência e a abnegação destes apaixonados que, não sendo correspondidos e às vezes sem esperança de o virem a ser, se entregam de corpo e alma ao objecto do seu amor.»
Parece que, de alguma forma, todos estão tomados por uma doença do espírito - como se tivessem contraído um mesmo vírus, com uma sintomatologia muito específica e similar entre si - que os deixa de certo modo atordoados, profundamente alterados, levando-os a escrever desta forma tão veemente e inflamada, tão convictos da certeza que os anima e irremediavelmente impele a dirigirem-se ao objecto amado, que muitas vezes é um hoje e é outro amanhã.
Com a particularidade que, entre a leitura de uma e outra destas missivas, para nós que as recebemos nesta maravilhosa compilação (que reúne documentos com mais de 200 anos) dista apenas um segundo, o tempo de um suspiro. O que aconteceu entre uma coisa e outra? Quão volátil é o ser humano? Quanto consegue iludir-se a si próprio e ao outro?
A escrita é soberba, mas mais do que a escrita, é a humanidade de cada uma das grandes figuras - que aqui surgem como personagens enlouquecidas, nas mãos caprichosas e erráticas do amor, do erotismo e da paixão - que se evidencia e impressiona.
«São os pequenos grandes momentos do quotidiano que mais revelam as personalidades, desde o desespero quase infantil de Dostóievski ao frio romantismo de Mussolini para a mulher que renegaria e mandaria internar.»
Cada carta é antecedida de um pequenino texto que contextualiza as circunstâncias em que a mesma foi escrita, e é essa breve explicação - que em dois parágrafos resume um mundo de paixões, de intenções e trilhos percorridos - que por vezes consegue ser mais surpreendente do que a própria missiva em si (ou que torna a sua leitura ainda mais impressionante). Dois parágrafos que, tantas vezes e de um só fôlego, desmoronam a magnífica edificação de desejo e ensejo que então tomava lugar no peito de quem escreveu cada uma destas cartas, que agora podemos ler à distância de uma vida.
Pontuação: 8/10
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