Mulheres (Charles Bukowski)

Ler Bukowski, é uma espécie de embriaguez, em múltiplos sentidos. Por um lado, e uma vez que se comece, é difícil parar. Não é por estarmos perante aquilo a que habitualmente chamamos um page turner - não - é algo diferente. No primeiro caso diria que é a curiosidade - de saber o final, o que vem a seguir, quem é o assassino, etc - que nos leva a querer virar mais uma página. Aqui é algo diferente, é - acima de tudo - pelo prazer, pelo deleite que cada pedaço de escrita proporciona, que somos levados a virar uma página atrás da outra.

Mas não é só isso. Muitos outros autores provocam essa mesma sensação de prazer, mas de formas muito diferentes. Voltando à embriaguez, é que Bukowski parece estar permanecer embriagado enquanto escreve, parece um tipo diante de quem nos sentamos num bar, no final de uma longa noite, que nos conta de enfiada uma série de episódios, aventuras e peripécias - as mais impróprias e inverosímeis - como só alguém muito alcoolizado consegue fazer. E que nos leva a pensar em que estado estaremos nós também, para nos termos posto ali a ouvir aquilo tudo.


Era definitivamente capaz de levar a cabo uns jogos sórdidos e irreais. Qual era a minha motivação? Estaria a tentar desforrar-me de alguma coisa? (...) Eu estava a deixar que as coisas acontecessem sem pensar nelas. Não estava a ter em conta nada para além do meu próprio prazer egoísta e reles. (...) Eu mexia em vidas e almas como se fossem os meus brinquedos.

Enfim, Bukowski é desbocado, inconveniente, inapropriado, deselegante, grosseiro, indecoroso. Mas a sua escrita cativa por essa mesma crueza e transparência, uma espécie de liberdade sem freio, que faz dele aquilo que é e que está à vista.

Pontuação: 9/10
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E Então Vai Entender (Cláudio Magris)

Descobri Cláudio Magris ao passar os olhos por uma lista de autores que repetidamente se perfilam como candidatos ao Nobel da literatura.

Dando voz a uma espécie de Eurídice - figura mitológica pela qual Orfeu desce às profundezas de Hades, na tentativa de a trazer de volta ao mundo dos vivos - a voz que nos fala explica porque razão fez o seu amado voltar-se para trás antes de chegar ao fim do percurso, determinando assim a impossibilidade permanente daquele regresso tão desejado. 


Daí a pouco, até os amigos faziam por se livrarem dele, aquela melancolia incansável incomodava as pessoas e também aquele seu bater no peito, aquele seu acusar-se de saber lá quais culpas...

Numa tonalidade que me remeteu para uma espécie de embalo, que encontrei também na escrita de Saunders, em Lincoln no Bardo (igualmente assente em vozes do limbo) a narrativa evoca momentos felizes, de grande simbiose entre os amantes, agora separados pelos muros intransponíveis da vida e da morte. 

Mas era apaixonado e teimoso, como um verdadeiro neurótico. É bom ser-se amada por um neurótico, dá segurança. Sabes que não lhe vai passar, é uma ideia fixa, resistente a todos os golpes da vida. Não creio que me teria enamorado assim tanto se ele não fosse tão neurótico.

De quanto desequilíbrio é feita uma história de amor, quanto padecimento, quanta loucura e quanta dor? É uma história curtinha (71 páginas) que não chega ao dia seguinte - sendo este o seu principal defeito, no que a mim me toca - mas fica connosco muito para além disso.

Pontuação: 7/10
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Tempos Difíceis (Charles Dickens)

Regressar aos clássicos é sempre uma experiência de assombro e alguma perplexidade - como é que se escreveu tão bem, de forma tão cuidada, com tanta minúcia, rigor e detalhe na reprodução de cenários - geográficos, sociais - e personagens, com todos os seus estados anímicos e complexidade interior - afectiva, moral - como é que se capta toda uma existência assim, desta forma que nos é dado ler nas páginas deste livro, chegado do século XIX até aos nossos dias... 

Depois de haver-se despido e deitado, Louisa ficou longo tempo à espera de sentir chegar Thomas. Isso não iria acontecer, ela sabia, antes da uma hora da madrugada, mas na paz do campo, que trazia tudo ao seu espírito excepto paz, o tempo custava a passar.

É com esta sensação de arrebatamento e admiração e uma certa reverência, se não mesmo humildade - tanto mais se atentarmos nas primeiras linhas da brevíssima nota biográfica do autor - que este encontro habitualmente tem lugar. A humildade decorrente da percepção de que são obras de génio estas, que temos o privilégio de ler, volvidos todos estes anos: 

[Charles Dickens] era o segundo de oito filhos. O seu pai, empregado nos serviços do porto e de espírito fantasioso, abandonou a instrução de Charles, que se foi educando, ao acaso, depois de sair da escola primária, que frequentou até aos nove anos. 

Uma sensação que se mistura a uma certa surpresa, que constantemente se renova, como se nunca estivesse verdadeiramente à espera de encontrar uma escrita assim.   

Menos ainda se conseguirá alguma coisa se olharmos para eles como máquinas, se os governarmos como se fossem teares e máquinas desprovidos de amor e simpatias, de memórias e inclinações, e almas capazes de desalento e de esperança (...)

Eça de Queirós dizia que nenhum outro romancista possuiu o poder de criar figuras vivas, e o dom supremo de comover e de produzir as lágrimas e o riso, de fazer sentir, de fazer pensar. Poucas coisas superam esta sensação de termos sido teletransportados para um espaço e um tempo que não é o nosso, que nos é dado ver e sentir como se ali estivéssemos genuinamente, que nos faz pensar no que fomos ontem, no que somos hoje e - como não? - no que seremos amanhã... 

Pontuação: 8/10
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Em Defesa do Erotismo (Ana Alexandra Carvalheira)

Se há sítio onde a psicologia deve meter o nariz é na sexualidade, onde tudo passa muito mais pela cabeça - se estamos a pensar no que estamos a fazer ou na lista de compras do supermercado, se estamos disponíveis para o imprevisto ou se permanecemos num estado de alerta semelhante àquele com que entramos num autocarro em hora de ponta - do que por qualquer outra questão anatómica, fisiológica, acrobática ou afins.

Ana Carvalheira, psicóloga e investigadora, faz as perguntas certas - Quando o desejo se perde, porque é que se perde? Qual a composição do erotismo, essa energia vital que mobiliza a nossa sexualidade? Como se faz um património erótico capaz de sustentar o desejo e o prazer? - e apresenta um conjunto de hipóteses e reflexões fulcrais e transformadoras, despertando-nos para pequenos nadas, num mundo que é muito mais feito de pormenores do que aquilo que possamos pensar.


Falamos de erotismo, uma entidade viva e instável que precisa de um investimento intencional. O erotismo floresce no mistério, na novidade, na transgressão, na separação e numa certa falta do outro. E perde-se na previsibilidade, na rotina e na fusão relacional.

Há muito a aprender sobre sexo, muitos preconceitos a abandonar (tantos e tão diferentes, uns mais evidentes, outros nem por isso), muitas amarras a soltar (ou a atar, conforme o gosto de cada um) e é isso que a autora oferece neste livro, que escreve com imenso sentido de propriedade e mestria a favor do prazer, da liberdade e da saúde sexual. A este propósito, ocorrem-me as palavras com que Alain de Botton introduz o seu livro "Como Pensar Mais Sobre Sexo": 

«É raro passar pela vida sem sentimentos – geralmente com um certo grau de sofrimento secreto, talvez quando acaba uma relação, ou quando estamos deitados na cama, frustrados, ao lado do nosso companheiro, sem conseguirmos adormecer – que de alguma forma somos um pouco estranhos, no que toca ao sexo. É uma área em que a maioria das pessoas tem a dolorosa e profunda impressão de ser bastante invulgar.» 

Pontuação: 8/10
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O Livro do Desassossego (Bernardo Soares)

O Livro de Desassossego foi mais um daqueles livros que me vieram parar às mãos na juventude, quando passava os olhos pelas prateleiras da biblioteca da faculdade onde estudava. Foi um choque, uma surpresa e um deslumbre imediatos.

Um choque, em parte, por perceber que havia alguém capaz de pôr por escrito um conjunto de pensamentos tão esdrúxulos, complexos, retorcidos e inusitados - como aquele que tinha diante dos olhos - com tamanho acerto e propriedade. Uma surpresa por encontrar um livro assim numa faculdade de Direito - tão rígida e cinzenta na sua base - e por ter ido dar com ele, aleatoriamente, no meio de tantos outros.


A verdadeira experiência consiste em restringir o contacto com a realidade e aumentar a análise desse contacto. Assim a sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está tudo; basta que o procuremos e o saibamos procurar.

Bernardo Soares escreve em prosa (alega que o verso é limitado por leis rítmicas como uma espécie de resguardos, coações, dispositivos automáticos de opressão e castigo) produzindo um conjunto de textos dispersos, fragmentos quebrados e desconexos, contendo essencialmente impressões da sua vida interior (in Introdução), que veio a apelidar de autobiografia sem factos.

«Jamais outro escritor conseguiu passar, de modo tão directo e nítido, a sua alma para a folha escrita» (ibid.) e é esta alma, esta vida interior tumultuosa, densa, simultaneamente emaranhada e profundamente lúcida que aqui nos é dado conhecer.

O cansaço de todas as ilusões e de tudo que há mas ilusões - a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perde-las, a mágoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim.

Fica a advertência de que deve ser lido com moderação. E pode ter contra-indicações. Não se destina a ser lido de seguida, de uma ponta à outra. É para se ir lendo aos poucos, fraccionadamente, permanecendo atento a possíveis efeitos secundários indesejáveis. 

Pontuação: 9/10
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