A Mulher Certa (Sandor Márai)

Assim como acho importante saber de que forma duas pessoas se conheceram, também me parece interessante saber de que forma um determinado livro chegou até nós. Sem esse elo muito particular, tantas vezes contingente e aleatório, esse feliz encontro nunca teria acontecido.

A leitura da Mulher Certa resultou de uma conversa com uma colega do meu grupo de leitores a propósito de um livro de Graham Greene (O Fim da Aventura), que estive à beira de abandonar até perceber, a meio do livro, que toda a história que até ali havia sido contada por um dos protagonistas - a mulher de uma conturbada relação amorosa - iria ser (re)contada pela outra parte - o homem, no caso - colocando-nos nessa posição tão privilegiada quanto rara que nos permite ter uma visão exacta dos dois lados da história: não apenas dos factos e eventos externos, mas também de tudo aquilo que se passava no íntimo de cada um dos personagens.


No apartamento estava tudo no seu lugar, só que as divisões pareciam vazias (...). Não são os móveis que dão vida a uma casa, mas o sentimento que anima as pessoas que nela habitam.

O mesmo se passa n' A Mulher Certa. É a história de um casal que se desfaz, dando origem a uma outra relação, que começara por ser paralela, e acaba, por sua vez, também por fenecer. A história - qualquer uma delas - é triste, mas é extremamente feliz a forma como a mesma nos é apresentada, como nos é contada, à vez, por cada um dos membros do trio amoroso.

Esse estado de relativa felicidade em que eu vivera e sofrera nos últimos anos, devorada pela angústia, porque essa falsa felicidade me parecia intolerável, agora, desvanecera-se, não existia mais - subitamente eu apercebia-me disso -, fora o máximo que a vida pudera oferecer-me.

Sándor Márai é exímio em revelar-nos a complexa teia de sentimentos e infindável miríade de pensamentos, emoções, desejos e anseios que habitam os recantos mais profundos dos seus personagens, colocando-nos no papel de confidentes circunstanciais e privilegiados dos protagonistas do seu romance.

Pontuação: 8/10
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Homo Deus - História Breve do Amanhã (Yuval Noah Harari)

Homo Deus é simplesmente brilhante. Começando por uma magnífica aula de história sobre os problemas que assolaram o mundo - a fome, as epidemias e a guerra - passando para uma projecção do que nos espera num futuro que se avizinha a passo rápido, mas que nos parece tão longínquo no pequeno espaço de uma vida e da capacidade que a nossa imaginação tem de ultrapassar as fronteiras daquilo que conhecemos no tempo que habitamos.

Ao contrário do que se passa numa tradicional aula de história, Harari fala-nos num tom empolgante, com um entusiasmo que contagia e inevitavelmente capta o nosso interesse e atenção, brindando-nos com uma espreitadela a este futuro próximo, onde o envelhecimento pode vir a ser considerado uma maleita - tratável como tantas outras - e a felicidade universalmente acessível através de um simples comprimido. Um futuro que provavelmente não conheceremos de outra forma que não esta, da mera antevisão possível. 

Se com SapiensYuval Harari nos fez sentir afortunados por vivermos na era actual, em Homo Deus não conseguimos deixar de sentir alguma pena - para não dizer uma pontinha de inveja - por não estarmos no lugar daqueles que poderão ter o privilégio de conhecer esses apelativos tempos vindouros. 



Ao longo de muitas gerações, o nosso sistema bioquímico adaptou-se para nos garantir as melhores hipóteses de sobrevivência e reprodução e não para nos tornar felizes (…) O que teria acontecido se uma mutação rara tivesse criado um esquilo que, ao comer uma noz, ficasse satisfeito para sempre? Do ponto de vista técnico, isto é possível se se alterar a configuração cerebral do esquilo. Quem sabe se isso não terá acontecido há milhões de anos a um esquilo sortudo. Mas, se aconteceu, o esquilo levou uma vida feliz e extremamente breve e essa mutação rara ficou por aí, porque o esquilo abençoado não se iria dar ao trabalho de procurar nozes, quanto mais companheiros sexuais. É por essa razão que as nozes que os humanos tentam juntar – empregos bem pagos, grandes casas e parceiros atraentes – raramente os mantêm satisfeitos por muito tempo.

Pontuação: 9/10
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A ridícula ideia de não voltar a ver-te (Rosa Montero)

Este é um daqueles livros que poderiam integrar a categoria de confort books. À semelhança do que acontece com a confort food, não é fabuloso, do ponto de vista nutricional, mas sabe bem e há dias em que não há nada que queiramos mais.

É um livro que se lê de uma penada. Parece uma espécie de companhia que trazemos no bolso, que fala connosco de cada vez que o abrimos. É claro que todos os livros fazem isso, de uma forma ou de outra, mas há aqueles para onde espreitamos de longe, como se ninguém, no enredo, se apercebesse de que estamos ali, e há aqueles, como este, em que a autora se nos dirige directamente e conversa connosco, do princípio ao fim.

É um livro ligeiro - com tudo o que isso tem de bom e mau - mas cheio de conteúdo. E nesse campo, já não poderei dizer que seja ligeiro. A autora aborda a vida de Marie Curie - quem era, de onde veio, para onde foi e por onde passou - numa época em que o mundo não estava feito para mulheres como ela, com as suas ambições pessoais, profissionais, académicas, intelectuais, etc.

Marie Curie teve um percurso notável a todos os níveis e é um privilégio conhecer os meandros de uma vida assim, contado por alguém que não se cinge aos feitos científicos, mas que olha para a mulher que alcançou e viveu esses feitos, à mistura com outros tantos, de que é composta uma vida.

Rosa Montero intercala a vivência do luto de Marie Curie, com base no diário escrito por esta após o falecimento do marido - «por momentos a minha dor parece que enfraquece e adormece, mas logo renasce, tenaz e poderosa» - com a sua própria experiência de luto, também por morte precoce do marido - «ainda não passara um mês sobre a morte de Pierre e a primavera explodia com aquela desconcertante indiferença com que a vida continua depois da morte de alguém querido» - entrelaçando uma e outra de forma sensível, emotiva, terna e inteligente.

A vida - seja ela qual for - está repleta de momentos difíceis, espinhosos e dolorosos. Não há como evitá-lo. O importante é saber lidar com todas essas coisas que nos acontecem. E é esse o conforto que se retira de um livro assim, o perceber que cada uma destas pessoas foi capaz de lidar com as suas circunstâncias, por vezes tão duras, tão agrestes, tão adversas. E acreditar que alguma dessa sabedoria, por ínfima que seja, fique connosco. 

«A vida abre caminho com a mesma obstinação com que uma plantinha minúscula é capaz de rasgar o chão de cimento para se assomar. Mas, ao mesmo tempo, a mágoa também segue o seu curso. É é isso que a nossa sociedade não gere muito bem: escondemos ou proibimos, imediata ou tacitamente, o sofrimento.»

Pontuação: 9/10
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