No Jardim do Ogre (Leila Slimani)

Leila Slimani traz-nos uma história de compulsão - uma compulsão sexual - vivida por uma mulher que, a custo, procura contrariar esse veio insidioso que emerge das profundidades do seu ser e a arrasta por um caminho de degradação moral, física e psíquica que cada compulsão consabidamente implica.

Quis o acaso que lesse este livro quando estava de férias, o que me permitiu fazê-lo com a mesma voracidade que perpassa toda a história. Como em qualquer comportamento aditivo, há qualquer coisa da ordem do desespero, da angústia e de uma agonia atroz que percorre toda a narrativa - sentida tanto por quem a vive, como por quem observa - como uma sensação de desastre à espera de acontecer, uma inevitabilidade terrível que, de uma forma empenhada, sistemática e metódica a protagonista procura combater, mas que apenas consegue, esforçadamente, adiar.

A cada página conseguimos sentir o pulsar de Adèle, na sua luta cadenciada e feroz contra um inimigo interior - que a domina, esmaga, sufoca - e é esse ritmo, quase orgânico, que nos liga e prende, inelutavelmente, ao percurso e destino do personagem.

«Adèle já não consegue pensar em mais nada. Levanta-se, bebe um café muito forte na casa adormecida. De pé, na cozinha, muda o peso de um pé para o outro. Fuma um cigarro. No duche, tem vontade de se arranhar, de rasgar o corpo em dois. Bate com a testa na parede. Quer que a agarrem, que lhe partam o crânio contra o vidro. Assim que fecha os olhos, ouve os barulhos, os suspiros, os gritos, os golpes. Um homem nu que arqueja, uma mulher que se vem.» 

Trata-se de um livro relativamente curto (184 páginas), mas nem por isso menos intenso e entusiasmante. 

Pontuação: 9/10
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Biografia Involuntária dos Amantes (João Tordo)

Há histórias de que temos medo, realidades das quais procuramos fugir, que preferimos não conhecer. Que ameaçam a nossa própria realidade, aquela que construímos para nós, que compusemos ao longo do tempo, numa tentativa de conferir sentido àquilo que antes não o tinha. 

Durante algum tempo, parecia que Teresa se esquecera de tudo - de um passado do qual nunca falava, da morte do pai, de um amante possivelmente violento. Foderam a todas as horas e em todos os lugares. A sensação de estar casado, descreveu-me, era, ao contrário de tudo o que sempre ouvira dizer, a maior libertação de todas. (...) Era um afrodisíaco como nunca antes sentira; Teresa era a coisa que lhe estava destinada, convenceu-se. A poesia era um embuste, a literatura uma escapatória dos mal-fodidos. A vida verdadeira era aquilo: vir-se todos os dias dentro da mulher que amava. 

Essa é a nossa história, aquela que contamos a nós próprios e à volta da qual nos (re)construímos. Haverá outra mais importante? Se a história terminou, valerá a pena abri-la de novo, rasgar tudo o que até ali escrevemos, em prol de uma outra versão, aquela que se apresenta como a verdade objectiva, para nós desconhecida até então? E a que preço o fazemos? 

Saldaña Paris era verdadeiramente melancólico: um homem de outro tempo que vivia aprisionado neste; um homem de um tempo em que a felicidade não era uma obrigação, mas a sorte de uns quantos tolos.

Esta é igualmente uma história de amizade, também ela uma forma de amor, tantas vezes subvalorizada, descurada e preterida. A amizade que nos liga ao outro de forma inquebrantável, que nos liga a nós próprios e ao mundo. 

Pontuação: 8/10
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OS 100 Melhores Livros do Séc. XXI



O The Guardian publicou uma lista dos 100 melhores livros do Séc. XXI, muitos dos quais estão traduzidos em Português. Aqui fica a lista completa:


1 - Wolf Hall (Hilary Mantel) Versão em Inglês

2 - Gilead (Marilynne Robinson)

3 - O Fim do Homem Soviético (Svetlana Aleksievitch)
4 - Nunca Me Deixes (Kazuo Ishiguro)
5 - Austerlitz (WG Sebald)
6 - O Telescópio de Âmbar (Philip Pullman)
7 - Entre Mim e o Mundo (Ta-Nehisi Coates)
8 - Outono (Ali Smith)
9 - Cloud Atlas Atlas das Nuvens (David Mitchell)
10 - Meio Sol Amarelo (Chimamanda Ngozi Adichie)
11 - A Amiga Genial (Elena Ferrante)
12 - A Conspiração Contra a América (Philip Roth)
13 - Nickel And Dimed Undercover In Low-Wage America (Barbara Ehrenreich) Versão em Inglês
14 - Fingersmith (Sarah Waters) Versão em Inglês
15 - A Sexta Extinção (Elizabeth Kolbert) 
16 - Correcções (Jonathan Franzen)
17 - A Estrada (Cormac McCarthy)
18 - A Doutrina do Choque - A Ascensão do Capitalismo de Desastre (Naomi Klein) 
19 - O Estranho Caso do Cão Morto (Mark Haddon) 
20 - Vida Após Vida (Kate Atkinson) 
21 - Sapiens - História Breve da Humanidade (Yuval Noah Harari)
22 - Dez de Dezembro (George Saunders)
23 - O Demónio da Depressão (Andrew Solomon)
24 - A Visita do Brutamontes (Jennifer Egan)
25 - Pessoas Normais (Sally Rooney)
26 - O capital no século XXI (Thomas Piketty) 
27 - Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento (Alice Munro) 
28 - Rapture (Duffy Carol Ann) 
29 - A Morte do Pai - A Minha Luta (Karl Ove Knausgård)
30 - A Estrada Subterrânea (Colson Whitehead)
31 - The Argonauts (Maggie Nelson) 
32 - O Imperador de Todos os Males - Uma Biografia do Cancro (Siddhartha Mukherjee)
33 - Fun Home - Uma Tragicomédia Familiar (Alison Bechdel)
34 - A Contraluz (Rachel Cusk)
35 - A Lebre de Olhos de Âmbar (Edmund de Waal)
36 - Experiência (Martin Amis)
37 - The Green Road (Anne Enright) Versão em Inglês
38 - Line Of Beauty (Alan Hollinghurst) Versão em Inglês
39 - White Teeth (Zadie Smith) Versão em Inglês
40 - O Ano do Pensamento Mágico (Joan Didion) 
41 - Expiação (Ian McEwan)
42 - Moneyball (Michael Lewis) Versão em Inglês   
43 - Citizen - An American Lyric (Claudia Rankine) Versão em Inglês
44 - Hope In The Dark (Rebecca Solnit) Versão em Inglês
45 - Os Níveis da Vida (Julian Barnes)
46 - Human Chain (Seamus Heaney) Versão em Inglês
47 - Persépolis (Marjane Satrapi)
48 - Night Watch (Terry Pratchett) Versão em Inglês
49 - Why Be Happy When You Could Be Normal? (Jeanette Winterson) Versão em Inglês 
50 - Oryx And Crake (Margaret Atwood) Versão em Inglês
51 - Brooklyn (Colm Tóibín)
52 - Small Island (Andrea Levy) Versão em Inglês
53 - Óscar e Lucinda (Peter Carey) 
54 - Mulheres & Poder - Um Manifesto (Mary Beard) 
55 - The Omnivore'S Dilemma (Michael Pollan) Versão em Inglês
56 - Underland (Robert Macfarlane) Versão em Inglês
57 - A Liga da Chave Dourada - As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay (Michael Chabon) 
58 - Postwar (Tony Judt) Versão em Inglês
59 - Beauty Of The Husband (Anne Carson) Versão em Inglês
60 - Dart (Alice Oswald) Versão em Inglês
61 - This House Of Grief (Helen Garner) Versão em Inglês
62 - Leite Materno (Edward St Aubyn)
63 - The Immortal Life Of Henrietta Lacks (Rebecca Skloot) Versão em Inglês
64 - On Writing (Stephen King) Versão em Inglês
65 - Em Parte Incerta (Gillian Flynn)
66 - Sete Breves Lições de Física (Carlo Rovelli) 
67 - The Silence Of The Girls (Pat Barker) Versão em Inglês
68 - O Fiel Jardineiro (John le Carré) 
69 - Os Enamoramentos (Javier Marías) 
70 - Diário de Um Escândalo (Zoë Heller) 
71 - Jimmy Corrigan - The Smartest Kid On Earth (Chris Ware) Versão em Inglês
72 - The Age of Surveillance Capitalism (Shoshana Zuboff) Versão em Inglês
73 - Nothing To Envy (Barbara Demick) 
74 - Dias sem Fim (Sebastian Barry) 
75 - Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos (Olga Tokarczuk) 
76 - Pensar, Depressa e Devagar (Daniel Kahneman) 
77 - Signs Preceding The End Of The World (Yuri Herrera) Versão em Inglês
78 - Quinta Estação (N. K. Jemisin) 
79 - O Espírito da Igualdade - Por que razão sociedades mais igualitárias funcionam quase sempre melhor (Kate Pickett e Richard Wilkinson)
80 - Stories Of Your Life Others (Ted Chiang) Versão em Inglês
81 - Colheita (Jim Crace)
82 - Coraline e a Porta Secreta (Neil Gaiman)
83 - Tell Me How It Ends (Valeria Luiselli) Versão em Inglês
84 - O Custo de Vida (Deborah Levy)
85 - A Desilusão de Deus (Richard Dawkins)
86 - Comportem-se Como Adultos (Yanis Varoufakis) 
87 - Priestdaddy (Patricia Lockwood) Versão em Inglês
88 - Noughts & Crosses (Malorie Blackman) Versão em Inglês
89 - Bad Blood (Lorna Sage) Versão em Inglês
90 - Visitation (Jenny Erpenbeck)  Versão em Inglês
91 - Light (M.John Harrison) Versão em Inglês
92 - The Siege (Helen Dunmore) Versão em Inglês
93 - Darkmans (Nicola Barker) Versão em Inglês
94 - A Chave do Sucesso (Malcolm Gladwell) 
95 - Crónicas - Volume I (Bob Dylan) 
96 - A Little Life (Yanagihara Hanya) Versão em Inglês
97 - Harry Potter e o Cálice de Fogo (J. K. Rowling)
98 - Os Homens Que Odeiam as Mulheres (Stieg Larsson) 
99 - Broken Glass (Alain Mabanckou)
100 - Não Gosto do Meu Pescoço (Nora Ephron) 

Serotonina (Michel Houellebecq)

É um pequeno comprimido branco, oval, divisível. Não cria, nem transforma, interpreta. Torna passageiro o que era definitivo; contingente o que era inevitável. Proporciona uma nova interpretação da vida: menos rica, mais artificial e impregnada de uma certa rigidez. Não proporciona nenhuma forma de felicidade, nem mesmo de verdadeiro alívio, a sua acção é de outra ordem: transformando a vida numa série de formalidades, permite enganar.

O protagonista deste romance, Florence-Claude Labouste, é um homem depressivo - nunca tinha sido nada senão um cobarde inconsistente: Tinha já quarenta e seis anos e não fora capaz de gerir a minha própria vida, enfim, parecia deveras plausível que a segunda parte da minha existência acabasse por ser, à imagem da primeira, um frouxo e doloroso desabamento.

Para combater a depressão, é-lhe prescrito um antidepressivo que lhe permite integrar os ritos maiores de uma vida normal no seio de uma sociedade evoluída (higiene, vida social reduzida à boa vizinhança, tarefas administrativas simples): os efeitos secundários indesejáveis mais frequentemente observados do Captorix são as náuseas, a diminuição da libido e a impotência. Nunca tinha tido náuseas, diz-nos.

Serotonina é um livro de excessos, todo um conjunto deles. Ao nível da linguagem, das imagens evocadas, da degradação de cenários e personagens, mas é ao mesmo tempo um livro extremamente bem conseguido, que toca questões elementares e transversais à natureza humana.

Kate, o meu último amor de juventude, o último e o mais grave. Depois dela pode-se dizer que a minha juventude terminou, nunca mais conheci os estados mentais que normalmente associamos à palavra juventude, aquela despreocupação encantadora (ou, consoante a escolha, aquela repugnante irresponsabilidade), aquela sensação de um mundo indefinido, aberto, depois dela a realidade fechou-se sobre mim, definitivamente.

Não será esta sensação de indefinição, de um mundo de possibilidades em aberto, a melhor definição de juventude? Vista à distância, a juventude é também um repositório de todas as ilusões, todas as esperanças e ideais, todas as histórias por acontecer ou completar:

Quando não consigo dormir, o que é mais ou menos todas as noites, ouço na minha pobre cabeça a mensagem do atendedor de chamadas dela (...), e a sua voz era fresca, era como entrar numa cascata depois de uma tarde poeirenta de verão, sentíamo-nos imediatamente lavados de toda a sujidade, de todo o abandono e de todo o mal.

São histórias que congelam no tempo, conferindo ao enredo e aos seus protagonistas um brilho ilusório, imerecido, que ocupam um espaço desmedido e despropositado, como se de inquilinos vitalícios e indesejados se tratassem, ocupantes difíceis despejar, que enredam aqueles que por aí se detêm, num labirinto de frustração, angústia e raiva.

Pontuação: 8/10
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